O noûs platônico: o conhecimento

José Beluci-Caporalini*

 

Resumo: Neste artigo procura-se discutir alguns aspectos relacionados à epistemologia platônica, a saber, a uso do noûs em seu pensamento. Para isto, começa-se apresentando alguns antecedentes da doutrina do filósofo ateniense, como o noûsanaxagórico. Então, apresentam-se características da sua dialética, pela qual Platão procura solucionar teoricamente o problema do uno e do múltiplo. Platão procura com o noûs chegar ao ápice da racionalidade, do inteligível, à Ideia, mas depara-se com problemas gigantescos. As coisas sensíveis têm ser? Não e Platão procura-o alhures, nas Ideias, que não são acessíveis ao conhecimento humano direto. Assim, o filósofo titubeia e apela ao mito. Mas, então, é possível separar onde começa o mito e termina o logos em sua epistemologia? Caso contrário, trata-

*             Prof. Dr. José Beluci CAPORALINI, Universidade Estadual de Maringá, DFL, Paraná,.

se verdadeiramente de se chegar ao máximo do conhecimento através do noûs, do logos? Como fica esta questão? Como é que ele a resolve? No que se segue procura-se verificar alguns dos passos de Platão nesta íngreme caminhada epistemológica.

Palavras chaves: METAFÍSICA- NOÛS- EPISTEMOLOGIA-

LOGOS- MITO

Resumen: En este artículo se busca discutir algunos aspectos relacionados con la epistemología platónica, o sea, el uso del noûs en su pensamiento. Para ello, se presentan algunos antecedentes de la doctrina del filósofo ateniense, como el nousanaxagórico. Se presentan las características de su doctrina, por la cual Platón busca solucionar teóricamente el problema de lo uno y de lo múltiple. Platón escudriña con el nous llegar al ápice de la racionalidad, de lo inteligible, a la Idea, pero se halla con problemas gigantescos. ¿Las cosas sensibles tienen ser? No y Platón lo investiga en otro sitio, en las Ideas, que no son asequibles al conocimiento humano directo. De este modo, el filósofo titubea y busca el mito. Pero, entonces, ¿es posible separar dónde empieza el mito y termina el logos en su epistemología? En caso contrario, ¿se trata verdaderamente de llegar al máximo del conocimiento a través del nous, del logos? ¿Cómo se mantiene esta cuestión? ¿Cómo la soluciona él? En lo que sigue se busca verificar algunos de los pasos de Platón en este solitaria jornada epistemológica.

Palabras clave: METAFÍSICA- NOÛS- EPISTEMOLOGÍA- LOGOS- MITO

Recibido: 13 de marzo del 2013

Aceptado: 12 de abril de 2013

Introdução

Neste artigo procura-se discutir alguns aspectos relacionados à epistemologia platônica, a saber, a uso do noûs em seu pensamento. Para isto, começa-se apresentando alguns antecedentes da doutrina do filósofo ateniense, como o noûs anaxagórico. Então, apresentam-se características da sua dialética, pela qual Platão procura solucionar teoricamente o problema do uno e do múltiplo. Vê-se que ao chegar ao ápice da racionalidade, do inteligível, à Ideia, o filósofo parece titubear e volta-se para alguns aspectos da presença do mito em sua epistemologia. Mas se assim é não se trata simples e meramente de se chegar ao máximo do conhecimento através do noûs. Como fica esta questão? Como é que ele a resolve? No que se segue procura-se verificar alguns dos passos de Platão nesta íngreme caminhada epistemológica.

Introdução geral

Platão, que segue as pegadas dos pré-socráticos, especialmente Parmênides, Heráclito e Pitágoras, e também de Sócrates, afirma que a realidade é conhecida pela mente, pelo noûs. Há a realidade sensível em que tudo passa, muda, cambia e da qual não se pode ter conhecimento preciso do que é e não é; por isto, não pode ser conhecida pela razão e inteligência, pelo noûs, Crátilo, 439c-440a; Fil. 59a-b. Há, não obstante, um mundo superior que independe da nossa experiência sensorial, uma vez que os sentidos enganamnos.

Platão, pois, deixa bem claro a distinção entre o conhecimento sensível, fundamentado na opinião e incapaz de ciência e o conhecimento intelectual que é científico. O primeiro é conhecimento do particular e mutável e o segundo do universal e imutável. Portanto, o conhecimento intelectual não deriva do sensível uma vez que ambos os conhecimentos têm características opostas. O conhecimento sensível tem por fundamento a aparência, o mundo material, que é múltiplo e mutável; já o conhecimento intelectual não; tem por fundamento o universal, o necessário, o imutável, a Ideia. Daí que postule um mundo que não mude, absoluto e universal, a que chama de mundo das Formas ou Ideias razão última da inteligibilidade do mundo sensível. Este ora o imita Fedro 250 a 251c; Timeu, 28ss, ora dele participa, Banquete 211b; Fédon 100d-78c.Todo o mundo sensível, é incompreensível, relativo; o inteligível, imutável, absoluto. Neste é possível a ciência, mas só o filósofo é que propriamente a pode ter, pois só ele capta a Ideia, ou seja, a verdade última. Quanto ao homem que não filosofa, a maioria, por viver sob o comando dos sentidos, da opinião, não consegue chegar ao verdadeiro conhecimento. É um verdadeiro prisioneiro dos sentidos, da ignorância daí advinda. Ele confunde as sombras da realidade com a mesma. Platão expõe plasticamente esta realidade em sua analogia mítica em a República, VII. Cf. KREIS, Steven http://www.

historyguide.org/ancient/lecture8b.html.Entrada em 13/08/2012.

Como é, afinal, que o filósofo pôde chegar a estas conclusões? No que se segue examina-se com mais detalhes como é que Platão elabora o seu método dialético e o seu uso máximo do noûs, inteligência ou intelecto.

Antecedentes: o noûs anaxagórico

Antes de qualquer coisa há que se dizer uma palavra rápida sobre a noção de noûs, nou~v, em Anaxágoras. Segundo Diógenes Laércio Anaxágoras tinha a alcunha de “Sr. Noûs”, devido à sua teoria segundo a qual o cosmo é controlado pelo noûs, mente ou inteligência, Vida de Péricles 4: Diógenes Laércio, II 6; (DK 59 A1). Esta doutrina atraiu e decepcionou tanto Platão, Fédon, 97a; 97bd; 98bc; Crátilo, 400a; 409b, como Aristóteles, Met. I 4: 985ª7: I 3: 984a16, pois Anaxágoras usa-a como o princípio do movimento, porém não tira todas as conclusões possíveis de um princípio tão promissor e prenhe de possibilidades, deixando assim o movimento do cosmo sem uma explicação teórica adequada.

Apesar disso, a teoria anaxagórica segundo a qual o noûs é puro e não está misturado a nenhuma outra coisa, enquanto que as outras coisas têm, todas elas, partes de todas as coisas (B12), influiria o pensamento platônico. Assim sendo, a teoria platônica da participação, segundo a qual as coisas sensíveis obtêm suas características e nomes das Ideias nas quais participam, Fédon, 102a 10ss., tem sua raiz na teoria de Anaxágoras. Segundo alguns comentaristas, Platão adota até a linguagem de Anaxágoras de comunhão ou participação nas Ideias que, como o noûs de Anaxágoras, são elas mesmas, por si mesmas e são autoexplicativas, Herrmann, 2007, apud Patricia Curd, em seu artigo sobre Anaxágoras, e que se encontra em: http://plato.

stanford.edu/entries/anaxagoras/#MinUs.Acesso em 09/08/2012.

Claro que há outros precedentes no pensamento platônico. Sócrates, o mestre, aparece com os conceitos, a virtude, o hedonismo mitigado, à aspiração ao conhecimento das essências, inclinação para os problemas morais e políticos e a razão, logos, das coisas, etc., MONDOLFO, 1963. O pitagorismo também se encontra presente com sua teoria das almas, imortalidadereencarnação, virtude, ascetismo, filosofia como preparação para a morte e os mitos escatológicos, GORMAN, 1995. Heráclito com sua teoria do panta rei ou relatividade das coisas e conhecimento das mesmas, HEIDEGGER, 1998, SPINELLI, 2003, p. 167-271. O mesmo diga-se de Parmênides, para quem o que é, simplesmente é, e, assim, o mundo sensível é objeto de opinião, contraposto ao mundo inteligível, objeto da verdade, da ciência, MARQUES, 1990. Platão procurará superar ambas as teorias, além de se valer das influências dos outros filósofos. Isto, juntamente com o seu engenho genial e criador, levará a sua filosofia ao máximo do conhecimento, através do noûs. Não obstante, forçoso é dizer, com a sua teoria do mito também.

Os pré-socráticos procuravam um princípio imutável que pudesse explicar a mutabilidade de todas as coisas, ao qual deram nomes diversos e que cada vez mais era mais teórico, “espiritual”. Parmênides, contudo, não concordará com a visão segundo a qual todas as coisas emergiram de uma substância. Afirmará que a realidade é una, eterna e imóvel e que é conhecida não pelos sentidos que enganam, mas sim, pela mente humana, pelo noûs; não pela aparência, mas pela razão. Heráclito afirma que todas as coisas passam, mudam, porém a estrutura fundamental do cosmo permanece a mesma. Isto quer dizer que há uma lei do câmbio incessante universal para as coisas dentro de uma realidade cósmica universal que permanece sempre a mesma. O logos, princípio inteligível, simbolizado pelo fogo e identificado com a alma ou vida, garante toda esta realidade. Tudo isto influiria na concepção científica platônica. ABBAGNANO, 1970, p. 193ss.;FRAILE, 1982, p. 302ss.; HIRSCHBERGER, 1969, p. 104ss., especialmente, p.116-117.

Quando se discute o problema do noûs platônico a primeira coisa que se deve perguntar é qual é o ponto central do mesmo? Tendo-se em mente a República em particular, pode-se dizer que Platão volta-se para uma série de problemas fundamentais neste célebre diálogo, como ajustiça, o Bem, e uma variedade de outros temas metafísicos profundos. Desse modo, por exemplo, quando se pensa, que os futuros filósofos devem conhecer em profundidade; conhecer o que é, diferentemente do que apenas parece ser, há necessidade que antes saiam da caverna da ignorância. Para este resgate há necessidade de uma longa formação educacional que os leve gradualmente a um conhecimento cada vez mais preciso até que cheguem àquele conhecimento do Bem, acima do qual é impossível de se continuar uma vez que é o verdadeiro limite do conhecimento, do inteligível.

Todo este processo de ascensão do conhecimento se dá por uma figura inicial que é a da luz, presente em as três analogias míticas que são a do Sol, da Linha segmentada em fragmentos e a da Caverna. A figura do sol e o mundo visível, dependente de sua luz, é uma analogia perfeita para a Ideia de Bem e o mundo inteligível. Por que esta insistência platônica que sempre aponta para a Ideia do Bem, em última análise? Isto se deve ao fato de que todos os homens a desejam, pois há no mundo sensível muitas e incomparáveis belezas, porém estas são todas imperfeitas em face da própria beleza, da beleza em si Rep. V, 479e. As muitas belezas sensíveis são vistas, mas as inteligíveis não Rep., VI 507b. Platão, em contexto diverso, também apresenta a antítese entre as muitas belezas e a beleza em si, representada pelas Ideias em geral, de modo especial a Ideia de Belo e a de Bem. Há que se notar, porém, que enquanto no Fédon 79ª Platão está preocupado com a imortalidade, em a República VI-VII, ele se preocupa com o problema do conhecimento da Ideia de Bem. O conhecimento da mesma se dá com o noûs, como se verá.

As analogias do sol, da linha e da caverna

A analogia da luz aparece nas três imagens platônicas em a República e são as imagens do Sol, Rep. VI, 505ª-509b, da Linha Segmentada, Rep. VI 509d-511e e a da Caverna, Rep. 514a-521b; 531c-535ª, respectivamente.

Talvez se possa dizer que o símile do Sol antecipe metaforicamente e seja uma representação da educação dos futuros guardiães. Isto porque somente pela educação é que o futuro filósofo conhecerá a Ideia de Bem que fundamenta todos os valores e, assim, governar e levar todos os cidadãos da Polis Ideal à justiça, sem equívocos. Para isto é que Platão discute o que é a justiça já desde o começo de a República, dando várias definições e considerando se vale ou não a pena ser justo. A resposta final virá apenas no fim de a República. Para isto,no entanto é necessário que o guardião, futuro filósofo, conheça a Ideia de justiça que em última análise participa da Ideia de Bem, que é a maior e mais universal de todas as Ideias.

Platão afirma que o sol é o rebento do Bem, Rep. VI, 508b-c. O que o próprio Bem é no domínio inteligível, em relação ao entendimento e aos objetos inteligíveis, o sol é no domínio visível em relação à visão e às coisas visíveis. (..) o sol não apenas dota as coisas visíveis do poder de serem vistas, como também da geração, (....).O Bem é a fonte da inteligibilidade das Ideias, bem como de seu ser e realidade, ainda que o Bem em si seja distinto do ser e a este transcenda em dignidade e poder, Rep. VI, 509b.

A alegoria do sol e os seus significados

Para se apreciar devidamente o Símile do Sol, em a República VI 507b-509c, deve-se ter em mente a Rep. V 476d-480a, quando Platão apresenta a distinção entre as coisas boas e a Ideia de Bem, assim como entre as coisas belas e a Ideia de Belo. O objetivo da analogia é para ajudar a entender o conhecimento da Ideia de Bem quando esta é comparada ao Sol.

Trata-se de uma alegoria muito rica, porém, que deixa fora muita coisa que poderia enriquecer mais ainda o seu significado. Não obstante, é um delineamento, não uma imagem completa do papel e importância da Ideia de Bem e o seu significado é complementado quando se tem em mente as Alegorias da Linha Dividida que aparece em a Rep. VI 509d-511e e a Alegoria da Caverna em a Rep. VII 514a-517c.

WHITE, 1979, p. 178; p. 180-181 ressalta alguns aspectos da analogia, que se expõem sinteticamente. Deve-se observar um primeiro aspecto, pois para Platão o conhecimento de qualquer Ideia pressupõe o conhecimento da Ideia de Bem. É isto o que ele quer dizer ao afirmar que a Ideia de Bem é a responsável pela posse da verdade das coisas que são conhecidas, ou seja, as Ideias, Rep. VI 507b e Rep. V 476c-480a e pelo conhecimento que se tem delas; assim como o sol, crê Platão, é o responsável pelas cores que os objetos sensíveis possuem e pela capacidade que se tem de vê-los, Rep. VI 508d-e.

O segundo aspecto a ser observado é o seguinte: Platão afirma que a Ideia de Bem é a causa do ser dos objetos inteligíveis, das Ideias, de modo semelhante ao sol que é a causa da geração e crescimento dos objetos visíveis, Rep. VI 509b. Todavia aqui se podem ressaltar algumas dificuldades: Mas então, a Ideia de Bem é causa das Ideias negativas, tais como as Ideias de Injustiça e de Feiura? Entretanto o filósofo está consciente disto. De fato, ele afirma o seguinte:

Considerando-se queo belo é o oposto do feio, eles são dois. É claro. E posto que sãodois, cada um deles é um? Admito-o também. E o mesmo se aplica ao justo e o injusto, ao bom e o mau e a todas as formas, Rep. V 476a-b. PLATÃO: 2006. Trad. e ênfase de Édson Bini.

Em terceiro lugar, o Bem, assevera o filósofo, está além do ser em dignidade e poder, semelhante ao sol que embora causa da geração e crescimento das coisas, não é a causa originária de seu surgimento, Rep. VI 509b.Contudo aqui surgem alguns problemas: quer isto dizer que se não pode aplicar propriamente a palavra ser ao Bem? Ou, então, que a Ideia de Bem está além e fora da classe das Ideias? Mas neste caso, pode-se perguntar, como entender Rep. 534, VIIb-c, quando Platão afirma que o dialético é alguém capaz de produzir um discurso racional sobre o ser de cada coisa; que detém o conhecimento de cada coisa? Mais: que a mesma coisa se aplica em relação a seu conhecimento da Ideia de Bem?Por fim, observa-se que assim como o sol é visível, igualmente também o Bem pode ser conhecido, Rep. VI 508b-c. Na verdade isto quer dizer que para Platão a Ideia de Bem pode ser conhecida como qualquer outra Ideia, pela mente ou noûs, Rep. 534, VIIb-c.

Alegoria da linha dividida em segmentos: significados

Rep. vi 509d-511

Platão, com esta analogia mítica, faz uma clara contraposição entre os quatro objetos diversos do conhecimento tais como aparecem no mundo visível, realidade aparente, típica da doxa, da opinião, mundo das aparências, em face do mundo invisível, realidade verdadeira, própria do ser, da Ideia, e cujo objeto é a ciência. O objetivo principal de Platão com esta alegoria é o de deixar bem claro que existe uma distinção entre os objetos sensíveis e os inteligíveis. São estes que a ciência da dialética tem por objetivo; a dialética dispensa as imagens sensíveis e chega ao primeiro princípio não mais hipotético. Platão quer insistir também a respeito dos procedimentos da dialética que são bem diferentes dos usados pelas “ciências” cujos objetivos são os objetos sensíveis, uma vez que elas repousam em hipóteses impossíveis de serem provadas, Rep. VII, 526c-527c.

A primeira divisão do inteligível consiste de Ideias, objeto do pensamento, porém através dos sensíveis particulares e hipóteses, como as usadas pelos geômetras e a figura do círculo para a compreensão da circularidade, ou, então, através de axiomas para provar os teoremas. Trata-se do conhecimento racional discursivo, que versa sobre o conceito de número e de quantidade.

A segunda divisão, a superior, do mundo inteligível consiste das Ideias, porém que são já atingidas pelo conhecimento, pelo noûs. É uma ciência puramente abstrata que não requer os objetos sensíveis ou hipóteses, apenas o primeiro princípio não mais hipotético, a saber, a própria Ideia de Bem. Isto quer dizer que há aqui o conhecimento racional intuitivo, que versa sobre os seres carentes de toda a matéria e quantidade. Esta ciência perfeita e verdadeira se dá apenas no último grau do conhecimento, pois aí há o conhecimento das Ideias. Não podiam ser percebidas pelos sentidos; apenas pelo entendimento, pelo noûs. Como se pode ver trata-se de um conceito ascendente e paralelo de ser e conhecer até que o noûs obtenha a ciência da Ideia; é o máximo de ser e de conhecer. E este paralelismo ascensional ser-conhecer, que é bem simbolizado nesta alegoria mítica o é também, posteriormente, na da Caverna. Em ambas, entre outros significados, fica bem claro que a ascensão até o ser, Rep. VII 521c, não é nada fácil e somente se consegue após árdua luta e ao fim de todo um processo. Mas é importante que se ressalte uma vez mais que a Ideia de Bem é sim conhecível, Rep. VI 508bc. Aliás, tanto a Ideia de Bem como todas as outras Ideias, Rep. VII 534, b-c.

Há que se mencionar também que no livro VII a educação dos(as) futuros(as) filósofos(as) se dará por diversas ciências, até que finalmente, eles consigam a dialética, que os capacitarão para que, então, venham a conhecer a Ideia de Bem, Rep. VII 531d-534d. Em termos da Alegoria que ora se aprecia, o objetivo da educação é o de mover o filósofo/a através das várias seções da linha até que chegue à Ideia de Bem. Enfim, o que Platão deseja aqui é mostrar a importância fundamental em se distinguir entre a ciência da dialética e outros tipos de procedimentos “científicos”, WHITE, 1979, p. 182.

Alegoria mítica da caverna: significados República, vii,

514a-521d

Após as alegorias míticas do sol e da linha dividida em segmentos Platão apresenta em a República, VII, 514a-521d, a sua analogia mais celebrada dentre todas as que se encontram em seus diálogos. Já no início, Rep. VII, 514ª, Platão compara o efeito da educação e da sua falta na natureza humana. É através da educação que o/a futuro/a filósofo/a supera as mais diferentes etapas de sua formação e aprendizado até que possa chegar à Ideia de Bem, que é a forma ou realidade ideal, mais originária que, portanto antecede e supera o próprio existir (ser), segundo Edson Bini, em sua tradução de a República, 2006, nota 307.

O cenário que Platão faz Sócrates descrever é misterioso e sombrio. Em uma caverna escura, há um número de prisioneiros que lá se encontram desde o seu nascimento. Estão impossibilitados de ver a luz do dia, e de olhar para trás e para os lados. Atrás deles há um pequeno fogo, antes do qual há um pequeno muro. Atrás do muro há um caminho por onde algumas pessoas caminham e falam, enquanto carregam objetos os mais diversos. Elas levam várias estátuas, que representam objetos como animais, árvores, bem como objetos artificiais. As sombras destes objetos são projetadas na parede do fundo da caverna. Isto faz com que os prisioneiros acreditem que tais sombras que veem e o eco das vozes ouvidas sejam a realidade. Eles acreditam que as sombras deles advindas sejam as coisas reais do mundo. Platão quer dizer que os prisioneiros da caverna representam a etapa inferior da analogia mítica da Linha dividida, ou seja, a imaginação, como se viu.

Um prisioneiro liberta-se e se depara com o fogo e as estátuas. Sofre e a confusão toma conta dele porque os seus olhos, pela primeira vez, deparam-se com a luz, inicialmente a do sol, dentro da própria caverna. Ele se dá conta que as coisas, que antes pensava ser a única realidade, são, na verdade, apenas sombras. O fogo e as coisas que vê é que são reais. Esta fase dentro da caverna representa a crença. Ele conhece apenas as coisas sensíveis, mas ignora a existência de uma realidade superior, que se encontra além da caverna.

O prisioneiro dá um passo a mais em sua procura e sai da caverna. No começo encontra-se assaz confuso por outra luz superior que lhe faz compreender pela primeira vez que as sombras, reflexos e até os próprios objetos sensíveis, não são tão reais assim. Isto porque segundo Platão ele conseguiu chegar ao topo do conhecimento, do noûs, e pensamento; o ápice da racionalidade. Pela primeira vez entrevê as Ideias, que, então, percebe serem as coisas mais reais que existem.

A seguir o prisioneiro liberto dirige a sua mirada para a luz e olha para o alto, para os céus e vê o Sol. Percebe que o Sol é a causa de tudo o que vê. O Sol é o símbolo da Ideia; o prisioneiro finalmente conseguiu chegar ao topo do conhecimento. O Sol aqui representa a Ideia de Bem, que é a causa de todas as coisas que são justas e belas, e que pode ser vista por todo aquele capaz de agir com inteligência, WHITE, 1979, p. 183.

 Platão mostra além do aspecto puramente epistemológico, o ápice a que o pensador pode chegar com o uso correto do noûs e que a educação liberta toda pessoa fora da caverna da ignorância; das sombras, pelo conhecimento.

 A Cidade Ideal platônica de a República têm por objetivo a educação daqueles que tenham os devidos talentos, porém, têm que querer desenvolvê-los pelo treinamento, pela educação incessante de modo que os olhos da mente, do noûs se voltem para a Ideia de Bem. Os que chegarem ao máximo do conhecimento, contudo, não devem apenas contemplar a Ideia de Bem; devem retornar à caverna, de onde saíram. Têm uma obrigação moral para com os antigos colegas prisioneiros, que é a de ajudá-los a se libertarem das sombras para a verdadeira luz do conhecimento. Platão mostra aqui, também, que ao chegar ao desenvolvimento máximo do noûs, do conhecimento, o filósofo não pode se limitar apenas à contemplação das Ideias, por mais nobre que isto seja Rep. VII 521,532a-535b; o seu conhecimento deve levá-lo de volta à caverna, de onde saíra, para ajudar no processo de libertação de seus antigos colegas. Ou, para usar as próprias palavras de Platão: é uma metáfora de nossa natureza em relação à sua educação ou falta dela, Rep. VII, 514a; os “ilustrados” pelo pela luz do conhecimento, os filósofos, têm sim uma responsabilidade, em termos de hoje, social.

Este preço a pagar, contudo é muito alto, mas dele não se pode escapar, pois Platão vincula conhecimento a procedimento ético. Deste modo, fica bem claro o vínculo ciência, conhecimento e ética, ou seja, a velha tese socrático-platônica do determinismo moral, a saber, a mais conhecimento, mais moral. Trata-se da transposição do determinismo intelectual ao campo moral, traduzindo-o em determinismo voluntarista. Há uma opinião falsa e outra verdadeira? Sim. Mas, há uma ciência falsa e outra verdadeira? Não, Górgias 545d. Isto quer dizer que ninguém erra voluntariamente, pois quem erra o faz por ignorância, porque não conhece o bem. Assim sendo, os erros não são voluntários, pois procedem sempre de uma deficiência de conhecimento. Ao que erra não se deve castigar, mas instruir Apologia 25e-26a; Laques 195a.Ou então, uma vez que se conhece o bem não se pode senão se determinar por ele, semelhante ao conhecimento, que ao conhecer necessariamente conhece algo. Segue-se, para Platão, que a vontade ao conhecer o bem, não pode senão agir corretamente. Esta tese foi desmitificada por Aristóteles, para quem a virtude não era ciência, (e0pisth0mh); a vontade é algo distinto da ciência; depende da escolha da vontade do homem Ética a Nicômaco, G, 1-8. Em nosso poder acha-se a virtude e também o vício. (...) De nós depende o fazer e o não fazer, o sim e o não, EN III, 5, 1114a 25-30.

O filósofo, que se esforça por conhecer o ser, Sofista, 254a-253ac, quando volta à caverna e fala sobre o mundo de lá como irreal e desprezível, como um mundo de sombras e de aparências, não será levado a sério. Seus colegas de antanho, se pudessem, o matariam; algo semelhante ao que aconteceu a Sócrates que tendo passado sua vida a mostrar a seus discípulos a procura do conhecimento e da verdade, posteriormente, por causa disto, tem que pagar com a própria vida.

Pouco importa, porque segundo a epistemologia platônica enquanto os prisioneiros, todos os homens, estiverem encarcerados em seus corpos, terão que se contentar com as coisas do mundo sensível e suas imagens, ou sombras das realidades verdadeiras, das Ideias, que lhes darão a liberdade verdadeira. Somente a filosofia e a dialética romperão com seus grilhões e lhes propiciarão a liberdade advinda da contemplação do Mundo Ideal, cujo Sol é a Ideia de Bem. Interessante, porém e en passant, é observar-se que Platão não descreve detalhadamente a Ideia de Bem e no lugar disto tem que a representar e comparar ao Sol, como já se mencionou acima.

Não se deveria ficar muito surpreso com isto uma vez que para as próprias Ideias Platão tem mais de uma descrição do que elas são: À primeira vista parece haver um eidos platônico para cada classe de coisas. Assim há eide éticos Par. 130b e Fedro 250d; eide matemáticos, Fédon 101b-c; (...), eide de objetos naturais, Timeu 51b, Sofista 266b, (...) e até mesmo de objetos triviais, Par. 130c. O que é mais surpreendente é encontrar eide para objetos artificiais, Rep. 596a-597d, Sofista 256b, Epístola VII 343d; (...) eide de relações, Fédon 74a-77a, Rep. 479b, Par. 133c, e negativos, Rep. 476a, Teet. 186a, Sofista 257c. Para que se veja a complexidade da postura platônica a respeito deste problema pode-se perguntar se os eide são apenas Ideias ou conceitos. Platão é que levanta esta questão e à mesma responde negativamente, Par. 132bc, 134b, PETERS, 1983, p. 65.

Deste modo, percebe-se que o problema epistemológico, do uso do noûs o máximo possível que todas as possibilidades intelectuais o permitem e de que dispõe o filósofo, não é tão claro, ou, ao menos, é problemático, como deixa bem evidente a analogia mítica da Caverna. Não obstante, há que se ter em mente Fédon 65e6-67b5 e a importante diferença platônica entre o conhecimento, ejpisthvmh, e o uso do intelecto ou nôus; bem como Rep. V b,c,e onde se afirma que o conhecimento é uma faculdade, a mais poderosa de todas.

Considerações finais

 Quais são as consequências advindas desta concepção epistemológica platônica? Platão identifica o interior da caverna com o mundo sensível, com a opinião, a doxa, com uma crença ingênua, porém provisória, em face do conhecimento verdadeiro. O mundo externo à caverna é o mundo inteligível onde se encontra a verdadeira ciência, pois é lá que se encontram as Ideias, especialmente a Ideia de Bem. Mas assim há uma consequência séria em face da busca constante, desta luta de gigantes em torno do ser, Sofista 246a, como diz o próprio Platão. A epistemologia platônica, o noûs platônico, explica o ser, todavia, perde o ente, pois aquele ser procurado pelos pré-socráticos não se encontra aqui no mundo sensível, mas fora, no mundo inteligível, nas Ideias platônicas. KIRK, RAVEN e SCHOFIELD, 1987, Parte I; SPINELLI, 2003.

 

O mundo sensível é comparado a uma caverna; é imperfeito; é desconhecido; incognoscível. A luz, o ser, a verdade, não estão aqui, mas sim, fora, numa região remota, que está acima da realidade sensível, do que pode ser captado pelos sentidos, no mundo ultrassensível, que Platão chama de Hiperurânio ou mundo das Ideias. Estas são captadas apenas pela parte mais elevada da alma, isto é, pela inteligência ou noûs, cf. PETERS, 1983, p. 150ss.

Para Platão o uso do noûs ao máximo, a dialética é a atividade mais nobre à qual o homem pode se entregar, Rep. VII 521,532a-535b, pois possibilita ao filósofo alcançar os limites últimos do inteligível ao conseguir o cume mais alto do conhecimento ao qual pode aspirar. Através da dialética o filósofo, passa do múltiplo ao uno, do contingente ao necessário, do particular ao comum, do móvel ao imutável, das aparências da caverna à realidade, das imagens à verdade, à verdade ontológica máxima, que é a Ideia de Bem.Com a dialética e o noûs Platão eleva essa semente que de certa forma já se encontra dentro da teoria pré-socrática e que expressa a procura dos antigos filósofos em sua investigação por uma ordem racional observável nos fenômenos naturais, desvencilhando-se dos elementos sobrenaturais. MORGAN, 2000, Cap. 02, 03, p. 1587.

Mas há dificuldades na teoria platônica do conhecimento. Por quê? Como já se viu pelas analogias míticas da linha dividida em segmentos e a da caverna, Platão não confia nos sentidos, que aprisionam o homem nas sombras da opinião deixando-o longe da verdade. Ele está convicto que a ciência adquire-se apenas pela razão, pelo logos e pela inteligência, pelo noûs, pois são as únicas faculdades que percebem de algum modo os objetos transcendentes e imutáveis que são as Ideias, porém que se encontram em um mundo superior.

Contudo, qual é o ser das coisas? Na verdade elas não o têm; quase que não servem a Platão em sua procura pelo ser último. No entanto se assim é onde procurá-lo? O ser verdadeiro está nas Ideias, como já se viu. Entretanto estas não são acessíveis ao conhecimento humano direto porque não se encontram no mundo. Platão afirma que apesar disto há um certo conhecimento delas, pois estão dentro do homem, e que isto lhe possibilita conhecer as coisas. Como? É aqui que Platão parece claudicar.

O que Platão faz então, para desmaio de vários comentadores? Cf. bibliografia de MORGAN, 2000 e PARTENIE, 2009. Ele transforma a razão e a inteligência, o noûs, em auxiliares do mito, no caso, ao utilizar a reminiscência, que serve para excitar a recordação do que a alma percebeu na existência anterior, junto às Ideias, Fedro, 246a, 247c, 250a; Rep. X, 614a. A conquista do conhecimento, como se poderia esperar, não é fruto apenas da razão, do logos e da inteligência, do noûs, mas também do mito, do mythos, pois como afirma o filósofo de Atenas, aprender não é senão recordar, Fédon, 76a.

 O homem já nasce “sabendo”; apenas tem que se recordar do que a sua alma contemplara previamente no mundo das Ideias. Assim é porque, para Platão, as coisas, em si mesmas só são acessíveis à alma quando captadas por um sentido independente do corpo, Fédon 66e, pois antes de se encarnar em um corpo a alma humana, independentemente do corpo, já era dotada de entendimento, Fédon, 76c. No Fédon, a anamnesis resvala de repente para o nível da episteme (...) e aquilo que é recordado não são os pormenores de uma outra vida mas um conhecimento das Formas (eide). A psyche é a faculdade na qual conhecemos os eide Fédon 78b-79b, como eles imortal, imaterial e invisível, PETERS, 1983, p.203. (...) a alma unitiva do Fédon é sugerida por considerações epistemológicas. Dado que a psyche do Fédon é evidentemente o logistikon dos diálogos posteriores, podemos integrar as suas funções e vê-la como a arché cognitiva de uma dianoia não sensorial, Fédon79a, Sofista 248a. Id., ib.

Deste modo o racionalismo platônico, que procura conhecer todos os meandros da realidade termina por desembocar em caminhos irracionalistas, quais os do mito. É óbvio que se poderia perguntar o que é que o filósofo de Atenas entende por “mito” em seus diálogos, contudo, isto não é o objeto deste artigo. Apenas se diz que o “mito” se “vinga” e, como fica claro pelo mito da carruagem alada, Fedro, 246a, 250a; cf. Rep. X, 614a é praticamente impossível separar onde começa o mito e termina o logos. Em outras palavras, o mito é inserido no logos; ele não mais é “usado”, nem é apenas “útil”, como afirma Brisson, BRISSON, 2005, Parte II, Cap. II, p. 157. O mito não é excluído nem mesmo desde o ponto de vista teórico e, em algumas circunstâncias o discurso ‘lógico’ platônico apresenta aspectos que se assemelham ao mito, BRISSON, 2005, p. 120. O mito se torna mito filosófico, nas palavras de Kathryn A. Morgan, 2000, Cap. 08, p. 242-281. E deste modo, como se poderia esperar, o noûs sozinho, não é levado ao máximo, como Platão queria que Anaxágoras tivesse feito, Fédon, 97a; 97bd; 98bc; Crátilo, 400a; 409b. Platão necessita do mito para que o conhecimento, o noûs, se dê em plenitude em sua epistemologia.

Na verdade, o noûs platônico o conhecimento, a inteligência, explicitamente, todo o sistema da teoria das Ideias platônicas, existe porque se fundamenta na imortalidade da alma. E esta se fundamenta no mythos da carruagem alada, Fedro, 246a, 250a. Isto quer dizer que todo o arcabouço lógico platônico repousa na teoria mythos-lógos, sem a qual fica difícil entender parte substancial da dialética do grande filósofo.

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