Platón, Creador de Mitos, según Luc Brisson

José Beluci-Caporalini*

Resumen: En lo que sigue, parte de una investigación que todavía continúa, se enseñan las ideas fundamentales de Luc Brisson sobre Platón y el mito. Se busca ilustrar y examinar su metodología y se analiza sus teorías expuestas, sobre todo, en su libro Platón, las palabras y los mitos. Se sabe que los escritos platónicos presentan varios aspectos al respecto del mito. Brisson, en este libro, busca enseñar la importancia que el escritor griego le atribuye al mito en varios de sus diálogos. Él llama la atención sobre el hecho de que la palabra mito, mythos, tenga el significado de una historia ficticia; y, además, que ha sido Platón el primero a emplear el término mythos en este sentido. Platón ha utilizado este término para describir la práctica de elaborar y narrar historias, esto es, la transmisión oral que se mantiene en la memoria de una comunidad. Brisson, de este modo, en la primera parte de su libro, reconstruye la descripción múltiple y variada que el filósofo de Atenas ofrece de mythos a la luz de la antigua leyenda de la Atlántida. En la segunda parte de su libro Brisson contrasta el sentido de mito, mythos, para Platón un discurso inverificable, con otra forma de discurso considerada superior por el filósofo, es decir, el lógos o discurso verificable. Este tipo de conclusión a la

*         Universidade Estadual de Maringá, DFL, PR, Brasil

que llega Brisson en su investigación es apenas una de muchas posibilidades. El autor de este artículo concuerda con Brisson en lo esencial. Por lo tanto, exámenes posteriores deben ser realizados, de otras obras y teorías, una vez que esta es una temática compleja, rica e interesante con consecuencias filosóficas fundamentales. Se demuestran, en lo que sigue, los pasos que Brisson recorre en su meticuloso análisis.

Palabras Clave: FILOSOFÍA - METAFÍSICA - MITO - FILOSOFÍA PLATÓNICA.

PLATO, THE MYTH MAKER, ACCORDING TO LUC BRISSON

Abstract: In what follows, part of a still ongoing research, it is shown Luc Brisson´s essentials ideas about Plato and the myth. One tries to illustrate and examine Brisson´s methodology and analysis as they stand, above all in his book Platón, las palabras y los mitos. As it is well known, there are quite a lot of various aspects about myth in Plato´s writings. Brisson, in this book, tries to demonstrate the importance that the Greek writer ascribes to myth in so many of his dialogues.

Brisson calls one´s attention to the fact that the word myth, mythos, do have the meaning of a fictitious story; and, still more, that Plato was the very first author to use the word mythos with such a meaning. Plato used it to describe the practice of making and telling stories, that is, the oral transmission that is kept in a community memory. Brisson, in such a way, in the first half of his book, recreates the multiple and various description that Athens´ philosopher offers about mythos having in mind the ancient story of Atlantis. In the second half of his book Brisson compares the meaning of mythos, for Plato an unverifiable speech, to another way of speech, which he believes to be superior, that is, lógos or verifiable speech. Such a kind of conclusion, to which Brisson comes to, in his research, is just one of many other possibilities which he delves not. The author of this article agrees with him in the essential. Therefore, further studies should be done; other works and different theories should be explored in depth. That must be so, once such a theme is so complex, though rich, interesting and full of essential philosophical consequences. In what follows it is shown the main steps followed by Brisson in his deep analysis.

Keywords: METAPHYSICS - MYTH - PHILOSOPHICAL MYTH- PLATONIC PHILOSOPHY.

PLATÃO, CRIADOR DE MITOS, SEGUNDO LUC BRISSON

         

Resumo: No que se segue, parte de uma pesquisa em andamento, apresentam-se as ideias fundamentais de Luc Brisson a respeito de Platão e o mito. Procura-se mostrar e examinar o seu procedimento teórico ao se analisar as suas teorias expostas, sobretudo em seu livro Platón, las palabras y los mitos. Sabe-se que os escritos platônicos apresentam vários aspectos a respeito do mito. Brisson, neste livro, procura mostrar a importância que o escritor grego a ele atribui em vários de seus diálogos. Ele chama a atenção sobre o fato de a palavra mito, mythos, ser tida com o significado de uma história fictícia, e que foi Platão o primeiro a usar o termo mythos neste sentido. Platão usou este termo para descrever a prática de elaborar e contar histórias, a saber, a transmissão oral que é mantida na memória de uma comunidade. Brisson, assim, na primeira parte do livro, reconstrói a descrição múltipla e vária que o filósofo de Atenas oferece de mythos à luz da antiga lenda da Atlântida. Na segunda parte do livro Brisson contrasta o sentido de mito, para Platão um discurso inverificável, com outra forma de discurso considerada superior pelo filósofo, ou seja, o lógos ou discurso verificável. Este tipo de resultado a que Brisson chega a sua pesquisa é apenas uma de muitas possibilidades. O autor deste artigo concorda com Brisson no essencial. Não obstante, crê que outras leituras hermenêuticas, não exploradas por ele, são possíveis. Portanto, exames posteriores devem ser realizados, de outras obras e teorias, uma vez que esta é uma temática complexa, rica e interessante com consequências filosóficas fundamentais. A seguir demonstram-se os passos que Brisson percorre em sua análise meticulosa.

Palavras chave: FILOSOFIA - METAFÍSICA - MITO - FILOSOFIA PLATÔNICA.

Recibido: 20 de setiembre del 2012

Aceptado: 17 de octubre del 2012

PLATÃO, CRIADOR DE MITOS, SEGUNDO LUC BRISSON

INTRODUÇÃO

No que se segue, parte de uma pesquisa em andamento, apresentam-se as ideias fundamentais de Luc Brisson a respeito de Platão e o mito. Procura-se mostrar e examinar o seu procedimento teórico ao se analisar as suas teorias expostas, sobretudo em seu livro Platón, las palabras y los mitos, 2005, ideias estas que também se encontram em Scientific Knowledge and Myth, 2004, How philosophers saved myths, 2008 e Vocabulário de Platão, 2010.

Sabe-se que os escritos platônicos apresentam vários aspectos a respeito do mito. Brisson, neste livro, procura mostrar a importância que o escritor grego a ele atribui em vários de seus diálogos. Ele chama a atenção sobre o fato de a palavra mito, mythos, ser tida com o significado de uma história fictícia, e que foi Platão o primeiro a usar o termo mythos neste sentido. Platão usou este termo para descrever a prática de elaborar e contar histórias, a saber, a transmissão oral que é mantida na memória de uma comunidade. Brisson, assim, na primeira parte do livro, reconstrói a descrição múltipla e vária que o filósofo de Atenas oferece de mythos à luz da antiga lenda da Atlântida.

Na segunda parte do livro Brisson contrasta o sentido de mito, para Platão um discurso inverificável, com outra forma de discurso considerada superior pelo filósofo, ou seja, o lógos ou discurso verificável. Este tipo de resultado a que Brisson chega a sua pesquisa é apenas uma de muitas possibilidades.

O autor deste artigo concorda com Brisson no essencial. Não obstante, crê que outras leituras hermenêuticas, não exploradas por ele, são possíveis. Portanto, devem ser realizados exames posteriores, de outras obras e teorias, uma vez que esta é uma temática complexa, rica e interessante com consequências filosóficas fundamentais. A seguir procura-se demonstrar os passos que Brisson percorre em sua análise meticulosa.

O QUE É UM MITO?

Brisson começa perguntando-se: o que é um mito? Não há uma definição que seja aceita universalmente, mostra Brisson. Com efeito, quando Claude Lévi-Strauss afirma que um mito será sempre reconhecido como tal independentemente das circunstâncias particulares das quais tenha se originado, em si, não constitui uma definição de mito. Dizer que X é um mito é a mesma coisa que afirmar que X é um mito, tal como Y na Grécia antiga. Isto não é uma verdadeira definição. Efetivamente, esta ausência de definição procede de uma autêntica dificuldade concernente ao sentido do termo “mito” (BRISSON, 2005: p. 16; veja também BRISSON, 2008, p. 15).

Esta dificuldade leva Brisson a verificar o significado de mito antes de Platão. Afirma que significava algo que se diz, a palavra, dizer, conselho ou história. Mythos, de onde provém o termo mito, modificou-se em função das transformações que afetaram tais termos, ao longo de uma evolução histórica que termina em Platão.

Em Platão, o sentido de mythos foi fixado de uma vez por todas (BRISSON, 2005: p. 16). Prévio a Platão não é nunca usado, ou associado, no sentido popular e pejorativo de história falsa ou de ficção inverossímil.

Quando Platão utiliza pela primeira vez o vocábulo mythos ele faz duas operações: uma descritiva e outra crítica. Com a ajuda deste vocábulo descreve uma prática discursiva particular, emitindo um juízo sobre o seu estatuto em relação a outra prática discursiva que se considera dotada de um estatuto superior (BRISSON, 2005: p. 16; BRISSON, 2008, p. 19-26).

Com base nisto é que o Autor faz a divisão de seu livro em duas partes. Na primeira parte do livro o Autor descreve o testemunho de Platão sobre o que é o mito como instância de comunicação. É o discurso pelo qual se comunica o que uma dada coletividade conserva na memória de seu passado e o transmite de geração a geração, seja através de um especialista, o poeta, ou não.

 

Na segunda parte, ele analisa as críticas platônicas ao discurso em que consiste o mito, a partir do discurso que o caracteriza como filósofo e que Platão considera como dotado de um estatuto superior, ou seja, o discurso do logos. Desde este ponto de vista, critica o mito por não ser um discurso verificável e nem argumentativo. Contudo, isto não impede Platão de utilizálo e reconhecer a sua utilidade e de integrá-lo em seu próprio discurso. Com efeito, o termo mythos aparece 101 vezes nos textos de Platão, com vários significados diversos. (Apud L. Brandwood, A word index to Plato, Maney & Son, Leeds, 1976, p. 113; cf. id., p. 991-1003; BRISSON, 2005: p. 189; cf. id., Anexo I, p. 189-195).

O TESTEMUNHO DE PLATÃO:

A COMUNICAÇÃO DO MEMORÁVEL

O mito, inicialmente, é considerado por Platão como instância de comunicação e se refere a experiências transmitidas oralmente por gerações sucessivas durante um grande período de tempo (BRISSON, 2008, p. 05-07; 16-17).

Não obstante, nem tudo é susceptível de chegar a ser instância de comunicação na qualidade de mito, mantido na memória da coletividade. Entretanto, pode ser sim, mantido e transmitido apenas por alguns especialistas como no caso da guerra que a antiga Atenas teve contra a Atlântida. Ou seja, somente chega a ser objeto de memória coletiva um acontecimento que sai do ordinário e que, além disso, possua uma significação dentro do sistema de valores reconhecidos pela coletividade em questão (BRISSON, 2005: p. 26-32). Como se sabe, Platão discute o Mito da Atlântida em o Timeu e no Crítias.

Apesar disso, em que difere o passado que o mito recupera, do presente que narra a história? O mito, basicamente, remonta à origem absoluta dos deuses, como se pode constatar na Teogonia de Hesíodo. Ou seja, os acontecimentos mitológicos desenvolveram-se em um passado muito remoto e distante do narrador do mito, impossível de verificação direta ou indireta. A fim de que se verifique a clara distinção entre História e Mythos basta que se recorde que Platão nunca, jamais, ao mencionar as guerras médicas e as do Peloponeso se refere ao vocábulo mythos. Usa-o, não obstante, para designar o modo de vida dos Ciclopes, Leis, III 680 d 3; ou em relação à fundação e queda de Troia, Leis III, 682ª 8, bem como à fundação das cidades dórias Leis III, 682 e 5; 683 d 3; também a Argos, Messênia e Esparta, Leis III, 683 e 10-684ª quando ele descreve a constituição destes mesmos estados (BRISSON, 2005: p. 33).

Deste modo, pode-se ver que para a história uma datação tão exata quanto possível é fundamental; já o mito se caracteriza pela ausência de datação precisa e fundamentalmente pela ignorância sobre o que se produziu realmente, Rep. II 359 d 1, X 614 b 4; cf. Prot. 320 c 8, Fedro 259 b 6 (BRISSON, 2005: p. 33-35). Praticamente não há nenhum interesse pela cronologia, relativa ou absoluta.

A história, diferentemente do mito, é basicamente escrita. Porém, há aqui um problema que Brisson assinala, pois ao objetivar o passado, a escrita torna impossível a adaptação constante do passado ao presente e assim, mata o mito, cuja relação com a realidade é, deste modo, denunciada como inverificável. Podese perguntar: isto não desperta em Platão a intuição segundo a qual a oralidade é superior à escrita? Com efeito, é no Fedro 274 b-278 que Platão defende por meio de um mito a superioridade da oralidade em relação à escrita (ZASLAVSKY, Robert, Platonic myth and platonic writing, 1981).

Platão afirma que apesar de não sabermos a veracidade dos relatos míticos do passado, ainda assim o mito mostra-se útil, Rep. II 382 c 10 – d 3.

MEIOS DE TRANSMISSÃO DO MITO

Por volta do século VIII, começo do século VII, a.C. há a reintrodução da escrita na Grécia. Até então o mito era narrado oralmente o que possibilitava versões diversas a cada narrativa. Isto muda com a chegada da escrita. Antes havia uma memória compartida por todos os membros da coletividade; agora há uma memória restrita a um número de pessoas que dominam o uso da escrita. Antes havia uma recriação a cada repetição da narração; agora a escrita objetiva e o mito passa a constituir um dado de fato. É cristalizado, pode-se dizer. A memória muda, se não de natureza, ao menos no modo de funcionar. Consequentemente, a profunda ambiguidade platônica em relação à oralidade e à escrita manifestada, por exemplo, no Fedro, 274b-277a com a superioridade daquela sobre esta (BRISSON, 2005: p. 38-53).

Não se pode olvidar, não obstante, que Platão, em seus Diálogos escritos, mostra uma capacidade imensa, genial e criadora como escritor; Diálogos escritos esses cujos significados estão sempre mais abertos a novos significados. Os diversos sentidos e significados de sua escrita ainda hoje se discutem com imenso proveito; nada está cristalizado em seus Diálogos onde o mito foi “eternizado” por ele, ao lado da escrita. Não apenas a linguagem escrita é ambígua; também a oralidade o é, isto porque o próprio Platão é ambíguo, diga o que disser Brisson.

FABRICAÇÃO

A oralidade torna a transmissão e a recepção indissociáveis do mito. Com a intervenção da escrita há uma clara distinção entre a fabricação, a emissão e a recepção da mensagem. O vocabulário de Platão relativo ao mito conserva os vestígios da passagem do primeiro para o segundo período, entre os séculos VIII e IV a.C. na Grécia (BRISSON, 2005: p. 55). Mas quem são os fabricantes de mitos segundo Platão? São, de modo especial, Homero, Rep. II 377 d 4, Hesíodo, Rep. II 377 d 4 e Esopo, Fédon 60 c 1, 61 b 6. Tais fabricantes de mitos contrapõem-se ao filósofo, isto é, ao fundador de uma cidade no Fédon 60 b-61 e em a República II 378 e 7-379a 4 (BRISSON, 2008: p. 09-10).

Todavia em que consiste este tipo particular de fabricação de mitos? Não o do poeta, pois a sua atividade é posta mais na fantasia que na razão e, para Platão, ele se converte no intérprete da divindade, Íon 533 c-534b e o mito, assim, pode-se considerar como “palavra divina”. Contudo, Platão não considera isso tão simples assim, já que o mimetismo de que se vale o poeta para fabricar mitos encontra-se cheio de ambiguidades (BRISSON, 2005: p. 64; cf. Cap. VI.). Esta temática aparecerá mais de uma vez ao longo deste artigo.

NARRATIVA

Platão divide os que contam mitos entre profissionais e não profissionais. Entre aqueles estão os que os fabricam, isto é, os poetas, Rep. II 377 d 4-6, bem como os seus subordinados, a saber, os rapsodas, os atores e os coreutas, Rep. II 373 b 6-8. Não obstante, a maioria dos que contam mitos é necessariamente não profissional. Eles se expressam em qualquer circunstância e possuem as seguintes características: idade avançada e o sexo feminino. Em relação à idade avançada veja-se Timeu 21ª 8- b 1; 22 b 4. Os mitos, contudo, são contados preferentemente pelo sexo feminino, por uma mãe Rep. II 377 c 2-4 381 e 1-6; Leis X 887 d 2-3 ou por uma ama Rep. II 377 c 2-4, Leis X 887 d 2-3 ou, ainda, por uma anciã Rep. I 350 e 2-4; Górgias, 527a 5-6 (BRISSON, 2005: p. 67; 76).

Protágoras também afirma que os mitos são narrados aos mais jovens pelas pessoas mais velhas, Prot. 320 c 2 – 4; cf. Rep. III 392 a 1.

RECEPÇÃO

A quem se destinam os mitos? Varia; se narrados por profissionais, a saber, poetas, rapsodas atores ou coreutas, destinam-se a um público adulto diverso, presente aos concursos dramáticos ou festas religiosas. Contudo, se são narrados por não profissionais, senhoras, em geral maiores, destinam-se aos mais jovens Prot. 320 c 3, Rep. III 392 a 1. Henri-Irénée Marrou, citado por Brisson, ressalta que Platão designa como sujeito privilegiado da recepção do mito a criança; a criancinha, mesmo a que ainda mama e que, embora não frequente o ginásio, e, portanto, não entende o que lhe é narrado, pois não tem sete ou oito anos, quando, na Grécia antiga começava-se a ir ao ginásio. (Apud MARROU, Henri-Irénée, Historia de la educación en la Antigüedad, p. 105-106; BRISSON, 2005: p. 83, nota 57).

IMITAÇÃO

O mito pode ser narrado ou apresentado com acompanhamento musical ou não; com a intervenção do coro ou não. Não importa como; Platão destaca sempre a mimese, a imitação, Crítias 107ª4-e3. Na Grécia antiga as obras de um poeta podiam ser cantadas, Timeu 21 b 6-7; Rep. III 398 c II – d 10.

Os personagens e os seres míticos que intervêm no mito não são análogos a nenhuma outra realidade acessível ao intelecto ou aos sentidos. São entidades específicas, dotadas de consistência ontológica. Pois bem, Platão denuncia precisamente este caráter ilusório criticando a imitação da obra em cada etapa da comunicação de um mito. E as suas conclusões são mais severas ainda, uma vez que para ele a realidade sensível é só uma imagem do ser verdadeiro, a Ideia. Apesar deste caráter ilusório o mito possui sim uma eficácia temível (BRISSON, 2005: p. 89; 95).

PERSUASÃO

A ambivalência do mito, que apresenta um caráter ilusório, ao estar dotado de uma eficácia temível, leva Platão a descrevê-lo seja como um jogo ou como uma atividade pouco séria, assimilando-o, por isso, ao feitiço ou ao encantamento.

Em última instância, o mito é esse discurso que somente pode permitir uma intervenção eficaz no que há de selvagem no homem, não de ordem ética, mas psíquica.

Em a República X, por exemplo, Platão assimila a imitação empregue por um imitador tal como o poeta a um jogo, ou seja, a uma atividade pouco séria.

Sócrates: […] o imitador não conhece nada digno de um discurso verificável no tocante ao que imita, uma vez que a imitação é um jogo ou uma atividade pouco séria Rep. X 602 b 7 – 8.

 

Brisson faz questão de afirmar que em as Leis Platão apresenta o jogo como uma primeira etapa da educação, Leis VII 796 e – 798 d e que o filósofo recorre ao jogo de palavras paidiá, jogo e paideia, educação, cf. Leis II 656 c 2, VII 803 d 5, VII 832 d 5. Isto porque a narração, comunicação e audição de um mito proporcionam um prazer do mesmo tipo que o proporcionado pela prática de qualquer jogo Timeu 26 b 7 – c 3; Fédon 110 b 1 – 4; Prot. 320 b 8 – c 7 (BRISSON, 2005: p. 102;114;116;119; BRISSON, 2008: p. 19).

A CRÍTICA DE PLATÃO:

O DISCURSO DO E PARA O OUTRO

 Na primeira parte do livro Luc Brisson descreve o testemunho de Platão sobre o mito como produto de comunicação. O mito aparece como o discurso pelo qual se comunica toda a informação sobre o passado longínquo, conservado na memória de uma coletividade dada que a transmite oralmente de geração em geração, seja este discurso elaborado por um poeta ou não.

Neste processo de comunicação a imitação está sempre presente, durante a fabricação e a interpretação do mito, seja por meio da palavra como sobre o gesto. Tal imitação predispõe os destinatários a modificar ou a determinar o seu comportamento físico e moral em função do modelo proposto. E é por isto que Platão se interessa tanto pelo mito e deseja vencer o seu monopólio para impor um discurso diverso que pretende desenvolver, ou seja, o discurso filosófico, ao qual reconhece um estatuto superior (BRISSON, 2005: p. 19-116; cf. 117;119).

 

Platão, contudo, se depara com um paradoxo uma vez que mythos podia, no passado, significar logos no sentido de discurso em geral; o filósofo de Atenas então lhe contrapõe logos como discurso verificável e, também, discurso argumentativo. Apesar desta distinção crítica, Platão reconhece certa utilidade ao mito e chega a admitir que em algumas circunstâncias o seu discurso “lógico” apresenta aspectos que se assemelham ao mito (BRISSON, 2005: p. 120). É óbvio, que Platão “não apenas reconhece certa utilidade ao mito”; há outro aspecto fundamental que aparece no problema mito e filosofia no pensamento platônico que será aludido, ainda que muito concisamente na conclusão. Por ora basta isto.

 

O mito apresenta-se, assim, como o discurso do outro e para o outro. Esta oposição, pois, não implica a exclusão do mito, inclusive desde o ponto de vista teórico. O narrador de mitos não deve calar-se, uma vez que o seu discurso deve substituir em seu próprio domínio o discurso do filósofo e do legislador.

O MITO COMO DISCURSO

O sentido de mythos, cuja etimologia não se conhece, sofreu profundas modificações entre Homero e Platão, em função do lugar cada vez mais importante ocupado por logos no vocabulário da “palavra”. Mas a evolução semântica de logos impossibilita a identificação de mythos com logos; de fato suscitam mesmo algumas oposições, as principais sendo mythos como relato e logos como discurso argumentativo e é o que Brisson explicitará nos capítulos seguintes.

 

Platão, ao assimilar mythos a logos, atualiza o seu antigo sentido de “discurso” como “pensamento que se expressa, opinião”. E o filósofo reorganizará de modo original e decisivo o vocabulário da palavra em grego antigo em função de seu objetivo principal: fazer do discurso do filósofo o padrão ou norma que permita determinar a validade de todos os outros tipos de discursos, incluindo-se aqui fundamentalmente o do poeta. Assim, mythos se oporá a lógos, como o discurso inverificável ao verificável e como o relato ao discurso argumentativo (BRISSON, 2005: p. 122;123).

A OPOSIÇÃO: MITO-DISCURSO VERIFICÁVEL

Em Platão logos designa não apenas a linguagem como representação, ou seja, o discurso em geral, mas também e fundamentalmente o discurso verificável. É evidente que as relações que mantêm mythos e logos, tomadas neste sentido, são muito diferentes das descritas no capítulo precedente.

No Sofista 259 d-264 b Platão define o lógos no sentido de “discurso verificável”. A análise empregada a este respeito servirá de modelo para uma definição de mito como discurso não verificável, implicando, em função do modelo aceito, o exame das seguintes questões: Que classe de sujeitos e de verbos intervém no tipo de discurso no qual consiste o mito? Quais são os seus referentes? Que valor de verdade e/ou de falsidade se lhe pode atribuir?

O que se entende por discurso verificável? Falso? Infalsificável? Brisson, servindo-se de Karl Popper, o esclarece assim:

É preciso entender aqui “verificação” no sentido de confrontação com os fatos. Um discurso verificável pode ser confrontado com os fatos que o corroboram ou que o invalidam segundo o caso. Se um discurso não pode declarar-se nem verdadeiro nem falso, então é inverificável; é o que sucede com o mito. Especialmente na filosofia da ciência, o termo “falsificável”, seguindo Popper, tem se tornado popular. Um discurso é verdadeiro, somente e se corroborado pelos fatos; se apenas um fato o invalidar, é declarado “falso”. Dizer que um discurso é infalsificável, quer dizer que a relação desse discurso com os fatos é impossível de determinar. É o que sucede com o mito (BRISSON, 2005: p. 125, nota 74).

Vê-se assim que Platão especifica o sentido do vocábulo logos. Não se trata de um discurso em sentido amplo, mas designa o discurso verificável, ou seja, susceptível de ser declarado verdadeiro ou falso. O filósofo que contempla o mundo das Ideias inteligíveis só pode ter um discurso verdadeiro de absoluta estabilidade (BRISSON, 2005: p. 131).

 (...) quando há discurso, é necessário que este seja discurso de algo, pois, se não o for, é impossível, Sofista, 262 e 5-6. Isto quer dizer que para Platão o domínio do discurso e o domínio do pensamente são homogêneos: Pois bem, pensamento e discurso são, sem dúvida, a mesma coisa, porém não chamamos ‘pensamento’ ao diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma? Sofista 263 e 3-5. (…) (Da opinião verdadeira) todo homem participa, pode-se afirmar, enquanto que na intelecção são os deuses (quem participam) e, entre os homens, apenas uma classe reduzida Timeu 51 e 5-6. Esta classe reduzida de homens é, evidentemente, a dos filósofos (BRISSON, 2005: p. 128;129;130;131).

 

Em síntese: o discurso falso, semelhante ao do mito, caracteriza o sofista, pois trata de algo distinto do que enuncia e o discurso verdadeiro de absoluta estabilidade caracteriza o filósofo, pois, este contempla o mundo das Ideias inteligíveis. Aliás, em relação às cinco definições platônicas do sofista, veja-se Sofista 222 b-223 b; 223 b-224 d; 224 d-e; 224 e-226ª-231 c; 225a-226a, respectivamente.

Isto posto, Platão apresenta as cinco classes de nomes nas que se distribuem os sujeitos do tipo de discurso em que consiste o mito: Deuses e demônios Rep. II-III 376 e – 398 e; o Hades Rep. II-III 383 a- 387 c; os heróis Rep. III 387 d- 392ª; os homens Rep. III 392 a-c.

Ou, nas palavras de Sócrates, com ênfase do autor deste artigo:

Sócrates: Decerto que sim. Bem, há algum tipo de narrativa cujo teor não discutimos ainda? Até agora dissemos como se deve discursar acerca de deuses, dáimons, heróis e sobre o Hades.

Adimanto: Foi o que fizemos.

 

Sócrates: Creio que o que resta é tratar dos discursos sobre os seres humanos, não é mesmo?

Adimanto: Obviamente. Rep. III 392 a 3-9.

 

Brisson chama a atenção para o fato de que todos os nomes que designam os sujeitos deste tipo de discurso em que consiste o mito, citados por Platão ou não, caracterizam-se por serem nomes próprios. Não remetem a classes, como “deuses, heróis, etc.”, mas a indivíduos: Zeus, Édipo, etc. Ou a coletividades, consideradas como indivíduos: “Musas, troianos, etc.” Quase todos estes nomes próprios são masculinos ou femininos e têm como referentes seres animados. São dotados de alma racional e imortal. Deste modo, animais, plantas e seres inanimados estão ausentes destes cinco referentes míticos usados por Platão.

Isto não significa que animais, plantas e seres inanimados não desempenhem função alguma nos mitos. As suas intervenções, contudo, fazem-se sobre o modelo das cinco classes elencadas acima e daí um antropomorfismo permanente (BRISSON, 2005: p. 133; cf. também nota 78; 211-214, Anexo III p. 211-214).

 

Ao se qualificar o mito como relato, como já se viu, o que se quer dizer é que não se trata de um discurso argumentativo (cf. Capítulo X, p. 151-155; BRISSON, 2008: p. 19-26). O relato mítico, apesar de não se conformar com a ordem racional, ajuda a aflorar a análise estrutural para o homem que pesquisa. As Ideias inteligíveis são a verdadeira realidade que é imutável; as Ideias são sempre verdadeiras, atemporais e o ato intelectivo que as apreende é absolutamente estável. As coisas sensíveis têm realidade porque participam das Ideias, são mutáveis e temporais. O ato intelectivo que as apreende é absolutamente instável.

A alma humana, mais precisamente sua faculdade chamada intelecto, consegue perceber as Ideias, seja diretamente quando está separada do corpo, seja indiretamente quando habita um corpo particular. Pois bem, as cinco classes de nomes, deuses, dáimons, heróis, habitantes do Hades e homens, mencionadas por Platão nos livros II e III de a República, remetem precisamente a estes dois tipos de referentes, a saber, às Ideias e às coisas sensíveis (BRISSON, 2005: p. 136;138;139. Cf. BRISSON, Luc e PRADEAU, Jean-François. Vocabulário de Platão, 2010, artigo Forma Inteligível, p. 41-44).

Platão, por um lado, não duvida de acontecimentos ocorridos em um passado longínquo, Pol. 271ª 5-b 3; Timeu 26 c-7-e 5, por outro, não obstante, tem que reconhecer a impossibilidade de fazer uma descrição definida no que a alma tem de imortal, e da maioria dos acontecimentos extraordinários. Isto porque esses referentes não são acessíveis nem aos sentidos nem ao intelecto, pois este não pode definir a forma inteligível do deus, do dâimon, do herói ou da alma humana em geral. Como remediar esta lacuna? Pela imitação, mas a imitação não é acessível nem aos sentidos nem à inteligência. Teoricamente isto seria um escândalo, sujeitando-se às críticas de Xenófanes relativas às concepções antropomórficas dos deuses, DK 21 B 14; DK 21 B 16; DK 21 B 15; DK 21 B 11 (Apud (BRISSON, 2005: p. 140 e 141).

Platão serve-se das críticas de Xenófanes, pois a imagem falada ou atuada de um deus, dâimon, de um herói, de um habitante do Hades ou de um homem do passado é apenas uma aparência em relação ao modelo; eles pertencem a uma realidade por natureza inacessível tanto à inteligência como aos sentidos. Claro, pode-se dizer que Platão julga o mito do poeta, que é dinâmico, por um sistema imutável de valores, Rep. II, III e X.

O referente do discurso do mito não é acessível nem ao intelecto nem aos sentidos e assim não se pode verificar se há ou não adequação entre este tipo de discurso e o referente em que consiste o mito. Deste modo o mito deveria situar-se além da verdade e da falsidade, porém não é o caso.

Em a República, II, por exemplo, Platão considera explicitamente o mito como um discurso falso. (…) contamos às crianças mitos (…) que são em geral falsos, ainda que haja também dentro deles algo de verdadeiro. Rep. II 376 e 6-377ª 8. (…) (…) [os mitos] que nos contam Hesíodo, Homero e os outros poetas (…) esses mitos falsos…, Rep. II 377 d 2-e 3. Em a República VII 522ª 7-8 Platão opõe claramente os discursos míticos aos discursos racionais; aqueles são discursos que contêm menos verdade, estes, mais (BRISSON, 2005: p.

143;144; cf. 145-146, nota 88).

Em o Crátilo, 408 b 6-d 4, Platão compara a Pan ambos os discursos, o racional ou argumentativo, “liso, belo” e o discurso mítico que é duplo e que pode ser verdadeiro ou falso. Fica claramente exposto pelo filósofo que o discurso mítico é falso, ainda que contenha algo de verdade, Timeu 51 e 5-6; Rep. II 377ª 4-6; é um discurso que contém uma mistura de verdade e de falsidade, Fedro 265 c 1; Crátilo, 408 b 6-d 4 (BRISSON, 2005: p. 145).

Observe-se o que afirma Paul Friedländer:

Para ele (Platão) mythos opõe-se a logos, uma “história” em contraste à análise conceitual, sobretudo uma lenda antiga, uma tradição ancestral, folclore, fábula, história para crianças, lendas de anciãs; o mito traz a marca do falso, ainda que possua algo de verdadeiro (FRIEDLÄNDER, 1973: p. 172).

Veja-se, contudo, como a problemática não é tão simples, apesar de tudo o que já se disse. Por exemplo, Platão mostra, em relação ao mito do destino da alma após a morte, que o discurso mítico também pode ser verdadeiro.

Sócrates: Escute, pois, como dizem, um discurso precioso que consideras, a meu ver, um mito, mas que eu creio ser um discurso verdadeiro (lo)gov), pois o que lhe vou narrar digo-o convencido de sua verdade, Górgias 523ª 1-3. Para, em seguida, atenuar um pouco:

Sócrates: Talvez isto lhe pareça um mito, à maneira de narrativas de anciãs, e o despreze. E não seria nada estranho que o desprezássemos se em nossa pesquisa pudéssemos encontrar algo melhor e mais verdadeiro, Górgias 527ª 5-8.

Brisson afirma que ao menos nestes dois últimos casos o mito é considerado globalmente um discurso verdadeiro. Mas deste modo como explicar o mito, como se viu acima, como um discurso inverificável, ou seja, que não pode ser nem verdadeiro nem falso? E ele afirma que Platão muda a perspectiva, a saber, verdade e erro já não radicam na adequação de um discurso com o referente ao que se suponha remeter, mas sim, na concordância de um discurso, neste caso o mito, com outro discurso, erigido na qualidade de norma, isto é, a Ideia. Trata-se do discurso do filósofo, de Platão, e não do poeta. Assim sendo, a epistemologia platônica tem em mente as Ideias e cede lugar à censura, comenta Brisson (BRISSON, 2005: p. 147).

E o que se segue deixa bem claro o que Platão quer dizer. Com efeito, aos fundadores de uma cidade não corresponde fabricar mitos Rep. II 378 e 7-379a 4. Isto quer dizer que o fundador de uma cidade, o filósofo, leia-se Platão, proporciona aos poetas os moldes a partir dos quis devem criar os seus mitos. Esses moldes ou tipos são as leis, Rep. II 380 c 7, 387 c 7 assim sendo, Platão pode afirmar que: 1. O deus é bom, Rep. II 379 b 1, logo é causa somente do bem; 2. O deus é perfeito, Rep. II 381 b 4, daí não poder padecer ou ser causa de mudanças. Portanto, a verdade ou falsidade de um mito depende então de sua conformidade com o discurso do filósofo sobre as formas inteligíveis, isto é, as Ideias, das quais participam as entidades individuais, o sensível, que são os sujeitos desse mito.

Contudo, o mito será ainda meramente “mito”? Veja-se, por exemplo, MORGAN, 2000, que afirma que o mito em Platão é, também, mito filosófico. Não é, pois, meramente um discurso falso, subsidiário ou adorno; pode sim, e o é mais de uma vez, ser inserido dentro da própria epistemologia platônica; é o que ela chama de “mito filosófico”. Brisson, entretanto, não compartilha e nem explora tal tese. Aqui não se aprofunda a tese do mito filosófico porque não é o objetivo específico deste artigo.

 

A OPOSIÇÃO MITO/DISCURSO ARGUMENTATIVO

 

Uma narração mítica relata acontecimentos supostamente acontecidos, mas não acrescenta nenhuma explicação e o encadeamento entre as suas partes é contingente. O seu objetivo único é o de estabelecer uma fusão emotiva entre o herói do relato e a pessoa a quem se dirige a narrativa. No entanto, não é este o procedimento do discurso argumentativo que segue uma ordem racional e o encadeamento de suas partes constituintes obedecem às regras lógicas e tem como objetivo tornar necessária a sua conclusão.

Esta oposição fica esclarecida uma vez que o mito é fabricado pelo poeta e a fabricação de mitos não é nada mais que um passatempo para o filósofo, como Platão afirma em o Fédon, 61 b 3-7.

O método racional possui limites insuperáveis e por isto, por exemplo, não consegue demonstrar a imortalidade da alma. Sócrates está convencido de sua imortalidade através do mito, não pelo método racional, Fédon 59e-107d; 72e-77a; 78b-84b; 81bd; 102a-107a. Sócrates, no Fédon 110b 1-4, também demonstra a utilidade deste mito. Para Platão, na leitura de Brisson, como se vê, o interesse pelo mito não radica nem em seu valor de verdade ou em sua força de argumentação, mas sim em sua utilidade no plano ético e político (BRISSON, 2005: p. 151;152;155; BRISSON, 2008: p. 26-27). É o que se discute a seguir.

A UTILIDADE DO MITO

Para Platão o mito possui dois limites sérios: por um lado é um discurso inverificável, muitas vezes próximo a um discurso falso; por outro, é uma narrativa cujos elementos se compõem de componentes contingentes. Não é o caso do discurso racional cuja organização interna apresenta um caráter de necessidade.

 

Não obstante, estes dois limites têm, em certo sentido, duas vantagens que conferem ao mito uma utilidade segura. Uma no domínio ético para o indivíduo e outra no político para a coletividade. Estas vantagens garantem a conformidade da conduta perante as regras e as leis e podem ser de duas classes, ou seja, uma obrigação física sobre o corpo pela violência ou uma obrigação moral sobre a alma pela persuasão. Ainda que Platão não desqualifique a obrigação física a sua preferência é a moral.

O mito desempenha um papel para a maioria semelhante ao da Ideia para o filósofo, como ao que se recorre para determinar qual conduta se deve adotar em um caso particular ou outro. Segue-se que tanto na ética quanto na política o mito pode servir de autoridade ao discurso filosófico (BRISSON, 2005: p. 158).

No plano ético o exemplo usado por Sócrates é o do Fédon sobre a imortalidade da alma, Fédon 114 d 1-7. Este discurso sobre a imortalidade da alma não se dirige à razão; para isto há outro procedimento. É um mito útil e se destina à persuasão para libertar do temor da morte, Fédon 102a-107 b; 77 d-78a.

Do plano ético passa-se com facilidade ao político já que o comportamento coletivo é, de certo modo, condicionado pelo individual. Por exemplo, as crenças soteriológico-escatológicas sobre o destino final das almas após a morte, repercutem-se diretamente no valor dos guerreiros, Rep. III 386 b 8-c 1 (BRISSON, 2005: p. 158;159).

Assinale-se que a utilidade do mito, seja no plano ético como no político, independe de seu valor de verdade ou falsidade, Rep. II 382 c 10-d 3. Porém, há necessidade do controle dos que narrem tais mitos.

Mas aqui surge um problema sério: o uso do falso semelhante ao verdadeiro, pois não se sabe ao certo o que é ou não verdadeiro acerca da coisa da antiguidade, Rep. II 382 c 10-d3. Platão, apesar disso, justifica a utilização da falsidade, ou seja, da mentira, seja em política exterior como em política interior, pois, como afirma: Se convier que alguns mintam, que estes sejam os dirigentes da cidade, já que o façam perante os inimigos como perante os cidadãos, para serem úteis à cidade, Rep. III 389 b 7-9. Mas, então, para que empenhar-se em criticar tanto a falsidade do mito?

Em relação ao uso da mentira para os habitantes da Pólis, Platão usa o mito da autoctonia, o qual explica que todos os cidadãos emergem da terra de sua cidade-estado como se fosse sua mãe, República, III 414d-e. Este mito mencionado em a República, III 414 c 1, 5-6, 7 também o é em as Leis, II 663 d 6-e 6. Ele serve para convencer os habitantes que a cidade-estado é uma e indivisível, embora composta de grupos distintos, como é mostrado no mito dos metais, República, III 415a-d.

Mas ao utilizar este mito quer dizer servir-se de um discurso falso, já que a autoctonia, ao menos pelo que se conhece hoje em relação à reprodução humana não é assim; isto mesmo que, talvez, em épocas anteriores tivesse sido de modo diverso. Platão, em o Político 271a 5-b 3, concretamente sob o reino de Cronos, situa essa raça de filhos da terra e, claro, não põe em dúvida a sua existência. Uma vez mais, o mito assemelha-se sim a um discurso falso, porém apresenta uma evidente utilidade, que, como já apontada, é a de afirmar que todos os cidadãos são irmãos e que, assim sendo, o seu primeiro dever é o de proteger a sua mãe, ou seja, a terra da qual surgiram e onde vivem.

Por conseguinte, mesmo denunciando a falsidade deste relato mítico Platão não se peja em usá-lo, pois o mesmo é útil e conhecido por todos e concorda com as necessidades fundamentais da vida em comum e da defesa do território. Isto apesar de a verdade ser bela e estável, bem ao contrário do mito, que em relação à autoctonia seja tão difícil de se fazer crer! Leis, II 663 d 6-e 6.

É por isto que o mito apesar de ser um discurso inverificável, que não apresenta um caráter argumentativo tenha uma eficácia maior quando transmite um saber compartilhado por toda a coletividade. Torna-se assim, a única alternativa à violência e garante na cidade a submissão da maioria às prescrições do fundador da cidade ou do legislador, que, na verdade são os filósofos. Em ambos os casos o mito desempenha o papel de paradigma, não pelo ensino, mas pela persuasão, de modo que os cidadãos, a maioria dos homens, conformem a ele o seu comportamento. Daí que o use Platão, apesar de o seu conteúdo não ser verídico. É uma “nobre” mentira (BRISSON, 2005: p.

158;159;160; 164).

REJEIÇÃO DA INTERPRETAÇÃO ALEGÓRICA

A utilidade reconhecida por Platão ao mito somente pode ser em consequência de uma interpretação alegórica. Contudo ele rejeita tal interpretação porque o jovenzinho não é capaz de discernir o que é alegórico do que não o é. Por outro lado, o que se recebe nessa idade costuma permanecer como algo indelével e fixo Timeu 26 b 2- c 3. É por esta razão que há que se ter o máximo cuidado de modo que as primeiras coisas que lhes forem apresentadas e, contadas em um mito, sejam as mais proveitosas Rep. II 378 d 3-e 3; cf. Leis, III 679 c 2-8 (BRISSON, 2005: p. 165;167;168).

 

Platão, no entanto, rejeita a prática da alegoria, mas por quê? O que alega como justificativa? Em a República afirma que as crianças, às quais os mitos dirigem-se primeiramente, não conseguem distinguir bem entre o alegórico e o que não o é, Rep II 378 d 3-e 3. Mais: os mitos são aquela realidade que contém a verdade em última instância? Não, pois para ele, a verdade só se manifesta efetivamente no discurso filosófico. O valor de verdade ou de falsidade de um mito não é tão importante, uma vez que um mito é verdadeiro ou falso na medida de sua concordância ou não com o discurso do filósofo sobre o mesmo tema. A verdade tem que ser buscada no discurso filosófico não no discurso mítico e aquele saber, do lógos, não pode ser utilizado a fim de transformar a falsidade do mito em verdade. Isto quer dizer que a filosofia não pode ser transformada em um instrumento de interpretação do mito, pois em tal caso este seria visto como o autêntico receptáculo da verdade (BRISSON, 2005: p. 171;172).

USO DERIVADO QUE PLATÃO FAZ DO VOCÁBULO MYTHOS

  Como se viu, mythos pode designar o tipo de discurso, que na primeira parte do livro, foi descrito como um fato de comunicação coletiva e ao qual Platão faz uma crítica exaustiva. O uso derivado do mito pode ser caracterizado pelo fato de Platão servir-se do vocábulo mythos para designar diferentes tipos de discursos que habitualmente designam outros vocábulos. Platão assim procede pelo fato de haver semelhança parcial entre a “definição” de mito e a de outros tipos de discurso. Ou seja, há que se ver o uso metafórico que Platão faz da palavra mythos.

Os tipos de discurso que a palavra mythos designa, quando Platão faz deles uso derivado, se relacionam aos domínios da retórica e da filosofia. Por um lado, duas ocorrências deste vocábulo remetem à retórica. Quando Sócrates imita Lísias no Fedro 237ª 9, 241 e 8 bem como exercício, quando um discurso deste tipo assimila-se a um jogo, a uma ficção, ou seja, a uma representação linguística, isto é, que tem em si mesmo a sua própria referência.

Mas é em um contexto filosófico que Platão usa outras dezesseis ocorrências de mythos. Cinco dessas ocorrências referemse a doutrinas filosóficas que Platão combate. No Teeteto 164 d 9, e 3 quando qualifica de mythos a doutrina de Protágoras. Também a doutrina materialista, talvez defendida na escola de Aristipo, assimila-se a um mythos, Teeteto 156 c 4. Por fim, no Sofista, cada uma das doutrinas referentes ao número do ser é imediatamente considerada como um mythos, Sofista 242 c 8, 242 d 6 (BRISSON, 2005: p. 173;174).

Platão, ao designar todas estas doutrinas filosóficas com o vocábulo mythos formula uma crítica precisa a este respeito. Isto quer dizer que estas doutrinas são falsas. Portanto, como discurso falso, tratam de uma realidade distinta da que descrevem. Assim sendo, devem ser consideradas como simulacros, ou seja, como imagens que não se conformam com a realidade que se supõe que representem, cf. Sofista 266 d 8-e 1.

 

Por conseguinte, a assimilação destas doutrinas filosóficas falsas a mitos. Há que se observar, contudo, que aqui se trata apenas de uma assimilação, uma vez que a falsidade de um mito, que não é um discurso verificável, não pode ser da mesma ordem da falsidade de uma doutrina filosófica susceptível, segundo Platão, de uma verificação efetiva (BRISSON, 2005: Cap. 9, seção C, p. 125-150, especialmente p. 142-150).

Platão, contudo, não reserva o vocábulo mythos, uso originário, que eram os mitos que se contavam na Grécia antiga, mas mythos, uso derivado, para designar as doutrinas que combate.

Em quatro casos ele usa o vocábulo mythos para qualificar o seu próprio discurso. (Ênfase do autor deste artigo.) Referem-se às hipóteses cosmológicas sobre a constituição do mundo sensível que Platão expõe no Timeu 29 d 2, 59 c 6, 68 d 2, 69 b 1. Em três casos, encontram-se a expressão ei)kw(v mu~qov, eikós mythos, Timeu 29 d 2, 59 c 6, 68 d 2 e em sete passagens do Timeu Platão apresenta o discurso de Timeu sobre a constituição do mundo sensível como um ei)kw(v lo)gov, eikós lógos, Timeu 30 b 7, 48 d 2, 53 d 5-6, 55 d 5, 56ª 1, 57 d 6, 90 e 8. Brisson acrescenta que o sentido desta última observação torna-se explícito na seguinte passagem do Timeu, 29 b 3-c3, na qual ele distingue dois tipos do discurso em função da natureza de seus objetos. Desde esta perspectiva, ei)kw(v lo)gov, eikós lógos, Timeu 30 b 7, 48 d 2, 53 d 5-6, 55 d 5, 56ª 1, 57 d 6, 90 e 8 tem que ser entendido assim: discurso que trata das cópias das formas inteligíveis, a saber, das coisas sensíveis. Consequentemente, ei)kw(v mu~qov, eikós mythos, Timeu 29 d 2, 59 c 6, 68 d 2 deve significar mito que trata das cópias das formas inteligíveis, ou seja, das coisas sensíveis. O primeiro é um discurso verificável; o segundo não o é (BRISSON, 2005: p. 175; 176).

 

Em resumo, a assimilação a um mito do modelo cosmológico descrito no Timeu e dos modelos políticos expostos em a República e em as Leis, assenta-se na semelhança no domínio da relação que mantêm estes discursos de tipos diferentes com um referente que, de todo modo, não é susceptível de qualquer tipo de apreensão efetiva (BRISSON, 2005: p. 178).

E com isto se conclui a análise feita por Brisson em seu livro e que aqui se expôs. A tese central defendida por Brisson neste livro é a de que o logos possibilita um discurso verificável, ao passo que o mythos não, portanto, o discurso do logos tem um status superior ao do discurso mítico no pensamento platônico, o que, para o autor deste artigo não exaure de modo algum toda a possibilidade de leitura do problema mito-filosofia no pensamento platônico.

Pelo que se viu pela análise de Brisson, com efeito, o mito é útil ao discurso do lógos, ou seja, ocupa um lugar meramente subsidiário no pensamento filosófico platônico. Será? Veja-se, por exemplo, MORGAN, 2000, que afirma que o mito em Platão é, também, mito filosófico. Não é, pois, meramente um discurso falso, subsidiário ou adorno; pode sim, e o é mais de uma vez, ser inserido dentro da própria epistemologia platônica; é o que ela chama de “mito filosófico”. Brisson, no entanto, não compartilha e nem explora tal tese. Por isto e pelo fato de o objetivo específico deste artigo ser outro, aqui não se aprofunda a tese do mito filosófico.

CONCLUSÃO

Na primeira parte do seu livro Platón, las palabras y los mitos Luc Brisson descreve o testemunho de Platão sobre o mito como produto de comunicação. O mito aparece como o discurso pelo qual se comunica toda a informação sobre o passado longínquo, conservado na memória de uma coletividade dada que o transmite oralmente de geração em geração, seja este discurso elaborado por um poeta ou não.

Neste processo de comunicação a imitação está sempre presente, durante a fabricação e a interpretação do mito, seja por meio da palavra como sobre o gesto. Tal imitação predispõe os destinatários a modificar ou a determinar o seu comportamento físico e moral em função do modelo proposto. Por isto que Platão se interessa tanto pelo mito e deseja vencer o seu monopólio para impor um discurso diverso que pretende desenvolver, ou seja, o discurso filosófico, ao qual reconhece um estatuto superior (BRISSON, 2005: p. 19-116; cf. 117;119).

 

Platão, contudo, se depara com um paradoxo uma vez que mythos podia, no passado, significar logos no sentido de discurso em geral; o filósofo de Atenas então lhe contrapõe logos como discurso verificável e, também, discurso argumentativo.

Apesar desta distinção crítica, Platão reconhece certa utilidade ao mito e chega a admitir que em algumas circunstâncias o seu discurso “lógico” apresenta aspectos que se assemelham ao mito (BRISSON, 2005: p. 120).

O mito apresenta-se, assim, como o discurso do outro e para o outro. Esta oposição, pois, não implica a exclusão do mito, inclusive desde o ponto de vista teórico. O narrador de mitos não deve calar-se, uma vez que o seu discurso deve substituir em seu próprio domínio o discurso do filósofo e do legislador.

Contudo, esta análise erudita de Brisson, apresenta evidentemente uma única visão possível da leitura deste complexo problema mesmo se tendo em consideração quando ele afirma que “em algumas circunstâncias o discurso ‘lógico’ platônico apresenta aspectos que se assemelham ao mito” (BRISSON, 2005: p. 120).

De fato, autores há que defendem a teoria segundo a qual Platão pensou que havia sim um inter-relacionamento entre mito e filosofia, apesar da superioridade do logos sobre o mythos. Assim, por exemplo, Kathryn A. Morgan, 2000, Catalin Partenie, 2009 e outros. Portanto, mesmo se reconhecendo a grande contribuição dada por Brisson, sobretudo com este livro, o fato de ele não levar na devida consideração que os mitos platônicos iluminam e interpenetram indissociavelmente os seus projetos filosóficos mais profundos, constitui uma lacuna mais que lamentável, uma vez que o conhecimento da filosofia platônica necessariamente passa pelos mitos e estes são bem mais que meramente “úteis” em seu pensamento.

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